A história da minha vida continua aqui. Para quem ainda não leu a primeira parte, pode acessar aqui.
Lembro que sempre vínhamos para Curitiba para fazer acompanhamento em um lugar, que eu achava mega divertido. Este local é onde as crianças com deficiência visual são educadas visualmente. Lá eles ensinam essas crianças a se virarem na sua vida cotidiana e dão uma esperança de inclusão no mundo aqui fora. Sempre que eu vinha, eu fazia exercícios com tampão nos olhos para tentar enxergar menos torto ou mais reto, fazia muitas leituras com material mega ampliado, montava quebra cabeças, aprendia quais eram as cores (sempre confundi algumas cores, laranja com rosa com amarelo… verde com azul…). Eram dias bem divertidos. Ali era tudo voltado para mim, não existiam dificuldades.
Acho que eu deveria usar óculos e fazer exercícios constantemente desde pequena. Não usava óculos. Não gostava, então, não usava. Fazer exercícios, fazia raramente. Não gostava e assim não fazia. Voltei a usar óculos com meus 11 anos. Lembro que chegou um médico particular na cidade e foi só aí que comecei a fazer um acompanhamento mais de perto. Passei a usar os óculos e depois de uns dois anos ele disse que poderíamos tentar corrigir o estrabismo através de uma cirurgia. Lembro até hoje, do dia que fui fazer a cirurgia. De acordar e não enxergar nada. Estava com os dois olhos tapados. Dentro de mim a ansiedade para saber se tinha dado certo. Se iria passar a ser uma pessoa normal. Enxergando retinho. Foram dias com os olhos tapados, fazendo muitos exercícios com o tampão, pingando colírio a toda hora… As pessoas que me conhecem dizem que melhorei 70% do que era antigamente. Eu, de verdade, não senti essa diferença toda. A vida continuou a mesma.
Lá pelo segundo grau foi que a vida começou a melhorar. Em uma consulta com a minha médica aqui em Curitiba, descobrimos que havia um equipamento especial para aumentar as coisas. Uma telelupa que serve para você enxergar de longe. Ela funciona para quando você está parada e quer assistir algo, identificar algo, ler.
Mas o dia em que voltei para escola e testei a lupa pela primeira vez, foi um marco na minha vida. Lembram que eu disse que sempre sentei bem na frente ou que copiava tudo de pé ao lado do quadro né? Pois bem, com a lupa, passei a sentar no fundão da sala. Passar a fazer parte de outro canto do espaço, foi de uma importância na minha adolescência. Não era mais a CDF que ficava sempre conversando só com o mesmo grupo. Passei a interagir com os outros membros da sala. Passei a ter independência. Eu podia copiar tudo do quadro sem pedir que um professor aumentasse sua letra, sem pedir para copiar do caderno de um colega a matéria que já havia sido apagada do quadro, sem ficar a todo momento dependendo que alguém ditasse o que estava escrito. Foi libertador.
Foi mágico ir ao cinema e sentar mais pro fundo e poder ver um filme legendado. Lembro até hoje, que o filme era Titanic. Como a lupa, é algo que você segura o tempo todo na posição que você precisa, imagina a dor no braço no final da sessão. As pessoas assistiam filmes comigo e eu ficava extremamente envergonhada de assumir que não conseguia ver direito. Sempre perdia quase tudo do que se passava. Tinha vergonha de assumir uma coisa que não era culpa minha. Encarava como algo vergonhoso algo que não era feio, mas que durante toda a minha vida foi sendo colocado para mim como algo à margem.
É assim que somos tratados: os diferentes à margem.
Desde muito pequena, minha forma de ler foi sempre colocando o objeto a ser lido no meu nariz. Literalmente. Sempre adorei ler. Ver televisão. Mas tudo isso, sempre precisou ser feito a uma distância mínima. Por exemplo agora, escrevo há uns 5 cm do computador.
Hoje em dia tudo funciona através de senhas eletrônicas. Odeio isso. Simples, pois grande parte dos painéis onde as senhas aparecem tem as letras num tamanho que para mim são ridículas. Quase nunca enxergo. O engraçado é ver também a reação das pessoas que não conhecem de fato a minha deficiência. Ficam abismadas com a proximidade que utilizo as coisas para ler.
Sempre que dependia de pegar ônibus, era outro problema, daqueles bem grandes. Não consigo ler o nome dos coletivos. Geralmente acabo dando sinal para eles e perguntando diretamente para o motorista se essa linha passa em tal ou tal lugar. Ler números das casas também não é comigo. Se preciso interfonar em um prédio e os números estão para dentro do portão, esqueça. Provavelmente vou ligar para alguns lugares antes de acertar o apartamento.
Por ironia do destino acabei indo fazer teatro. Me apaixonei pelo fazer teatral. Tinha 12 anos. Uma nova visão de mundo era aberta para mim. As coisas eram mais livres, coloridas… um local em que minha criatividade era livre e as pessoas não davam enfase ao lado estético. Até muito tempo tive essa crença. De que o mundo teatral era o local certo para mim, um local onde o fator estético não seria levado em conta.
Aí, fui fazer faculdade. Vim para a cidade grande. E novamente experimentei o lado cruel das pessoas. Sim, pessoas adultas também são cruéis como as crianças. Afinal, o adulto cruel, na minha cabeça, foi a criança cruel que nunca foi ensinado pelos pais que para ser sincero é preciso saber utilizar o bom senso. Acontece que o preconceito do adulto é velado. Ele não é sincero como o da criança.
Foram várias portas na cara. Não por não merecer os trabalhos, mas por ser diferente. Por ser considerada incapaz. Fora do padrão.
Cansei de sofrer. Fui procurar conhecer meus direitos. Fiz concurso público para as cotas e passei.
Hoje utilizo todos os benefícios que me são garantidos e luto por tantos outros que se fazem necessários para melhorar a vida de nós que temos algo de diferente. Para que a vida de tantas crianças, mães, portadores de necessidades especiais seja mais simplificada. Afinal, esse ridículo outdoor mostra como nossa vida pode sim, vir a ser dificultada.
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